Vivaldo Andrade dos Santos (Brasil/U.S)

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Clarice 100 Ears

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Clariceana ("Esse texto nasceu de minha primeira leitura de Água-viva e A hora da estrela, nos anos 1980.") Hoje acordei com vontade de rasgar a minha boca em tiras. Porém tenho medo que o meu caráter regenerativo faça-me nascer de cada uma dessas tiras e esse desejo seja estendido e que todas as outras minhas bocas tenham o mesmo desejo que eu – o de se rasgar também em tiras. Atiro a escrita em mim e me atiro na escrita sem saber se sou eu dentro de minha escrita ou se é a minha escrita dentro de mim. Vou juntando letra atrás de letra, me escrevendo em linhas. Virando novelo de lã a ser desalinhado, tentando causar desalinho – bola de lã a ser brincada e estapeada pelo gato. E a escrita é a mulher que brota a cada instante de dentro de mim. Minha escrita grave, grávida de mim 24 horas por dia, 365 dias por ano. É como se eu dentro da minha escrita estivesse pronta a brotar de dentro dela pra fora. Brotar do ôco. Da boca. Do útero. Do onde. E eu sou o onde. A boca ôca. Onde-útero. Onde-da-palavra. Sou ôca. Palavra a ser preenchida. Palavra ôca, preenchida por minha escrita ôca. Ouço o tic-tac da minha escrita dentro de mim, e a qualquer hora é hora. Saberei-me explosiva. Explodida. Gero a escrita e ela me gera. A trago dentro da minha barriga grávida de nove meses. Grávida de mim. Grave de mim. Quem quiser me saber, saber de mim-minha-escrita basta encostar a boca na minha enorme barriga ôca e me ouvir no meu próprio útero. De forma que o meu ôco encontre o ôco de outro eu exterior. Eu-palavra somos uterinas. Interiores. Ulteriores. Somos o dentro. O dentro da outra. Gerativas. Ocas, se não nos geramos juntas. Cocomitantemente. Vivaldo Andrade dos Santos é poeta e autor dos livros infanto-juvenis O rato que roeu a roupa do rei e Meskwaki and the President. Desde os anos 90, vive nos Estados Unidos, e é professor de literatura e cultura brasileira na Georgetown University, em Washington DC. --- Send in a voice message: https://anchor.fm/marilia-librandi/message